02/11/2014 09h02
- Atualizado em
02/11/2014 09h02
Ministra do TST, ex-doméstica, lembra trajetória: 'Acreditava que daria certo'
Nascida na roça, ela começou a trabalhar aos 14 anos para poder estudar.
Delaíde se define como persistente e planeja cursar inglês e fazer mestrado.
A ministra Delaíde Miranda Arantes em seu gabinete no Tribunal Superior do Trabalho (Foto: Raquel Morais/G1)
O gabinete de 70 metros quadrados com vista privilegiada do Lago
Paranoá em nada lembra a casa simples das fotos que decoram a mesa da
ministra do Tribunal Superior do Trabalho Delaíde Alves Miranda Arantes,
de 62 anos. As imagens são um registro da trajetória da magistrada, que
aos 14 anos deixou a zona rural de Pontalina, no interior de Goiás, e passou a trabalhar como empregada doméstica na cidade para poder estudar.
A decisão partiu dela mesma, que até então ajudava os pais no trato com
as pequenas lavouras de feijão, arroz e milho. Por dois anos Delaíde se
dividiu entre os cadernos e o escovão de aço da residência de uma
professora e um contador em troca de menos de um salário mínimo.
"[Era] mais um suporte para os estudos. Papai sempre teve dificuldade
financeira", lembra. "Eu não fazia o serviço todo da casa, ela [a
patroa] também fazia algum serviço. Dava para conciliar com os estudos.
Eu estudava à noite. Só tenho lembrança boa desse período."
A paixão pelo direito já se desenhava naquela época. Delaíde
acompanhava as sessões do Tribunal do Júri e lembra que se sentia
fascinada com as discussões. "[Eu gostava de ouvir] Os argumentos. O que
é mais interessante é que ambos expõem os fatos como se tivessem razão.
É muito instigante essa versatilidade que o direito tem", diz.
Pouco tempo depois, a mãe de Delaíde conseguiu emprego para ela de
recepcionista do consultório de um médico casado com uma prima dela. Foi
com a ajuda dele que ela conseguiu uma vaga para fazer o segundo grau
em Goiânia. O ensino oferecido era profissionalizante, e ela optou por
cursar contabilidade.
Em troca de moradia e alimentação, a ministra voltou a exercer a
atividade de doméstica, mas sem receber salário. Depois, trabalhou em um
escritório de advocacia e em uma revendedora de tratores e assim
conseguiu dinheiro para dividir uma casa com uma prima. As experiências a
fizeram confirmar a vocação pelo direito.
Fotos
feitas em zona rural de Pontalina, onde a ministra Delaíde Arantes
morou até os 14 anos; na primeira imagem, ela abre porteira do sítio; na
segunda, casa da família; na terceira, ela percorre caminho por
córrego, como na adolescência; na quarta, outra visão da casa (Foto: TV
Globo/Reprodução)
"Era uma saudade, tinha dia que dava saudade de voltar [para a casa dos
pais]. [Mas] Acreditava que daria certo. Se tem uma coisa que é minha é
a persistência. Não vai dar certo não existe no meu dicionário",
lembra.
Delaíde passou para direito aos 23 anos, em uma faculdade particular. Até se formar, quatro anos depois, ela trabalhava de dia e estudava à noite. Meses antes de colar grau, pediu demissão e começou a estagiar em um escritório de advocacia trabalhista. A indicação veio de um professor, que fez uma consulta aos alunos em sala de aula.
Delaíde passou para direito aos 23 anos, em uma faculdade particular. Até se formar, quatro anos depois, ela trabalhava de dia e estudava à noite. Meses antes de colar grau, pediu demissão e começou a estagiar em um escritório de advocacia trabalhista. A indicação veio de um professor, que fez uma consulta aos alunos em sala de aula.
A vivência que tinha, os casos que pegou e a possibilidade de conciliar
o trabalho com a criação das duas filhas fizeram com que ela tomasse
gosto pela área. Dois anos depois, ela virou sócia do escritório. Ao
todo, Delaíde passou 30 anos advogando.
"Se tivesse que escolher de novo, não seria diferente. A relação
capital-trabalho é uma relação muito conflituosa, mas fascinante ao
mesmo tempo", diz. "Eu diria que em cada fase da carreira a gente lida
com situações diferentes. Advoguei muito para sindicatos, aí veio uma
outra fase em que também advoguei para empresas. Essa noção de advogar
para trabalhadores e também para empresas é muito boa."
A ministra Delaíde Miranda Arantes, de 62 anos
(Foto: Delaíde Miranda Arantes/Arquivo Pessoal)
(Foto: Delaíde Miranda Arantes/Arquivo Pessoal)
A indicação para o cargo no TST foi feita pela Ordem dos Advogados do
Brasil no começo de 2011. Desde então, ela já julgou mais de 26 mil
processos. Outros 13 mil estão para análise, e a meta é atender a pelo
menos mil por mês.
Para Delaíde, as vivências que teve na juventude a ajudam a ter uma “sensibilidade maior” durante as audiências. “Amplia muito a minha visão. Discutimos muito a neutralidade do magistrado, porque para julgar ele precisa ser justo. Mas, na verdade, a gente traz toda a experiência que a gente tem de vida. E essa convivência social é importante. O judiciário não está longe da sociedade. São desafios bem diferentes, mas que eu posso aproveitar a minha experiência prática.”
Para Delaíde, as vivências que teve na juventude a ajudam a ter uma “sensibilidade maior” durante as audiências. “Amplia muito a minha visão. Discutimos muito a neutralidade do magistrado, porque para julgar ele precisa ser justo. Mas, na verdade, a gente traz toda a experiência que a gente tem de vida. E essa convivência social é importante. O judiciário não está longe da sociedade. São desafios bem diferentes, mas que eu posso aproveitar a minha experiência prática.”
Entre as principais bandeiras defendidas pela ministra estão o combate à
exploração infantil e a garantia de direitos àquelas pessoas que, como
ela um dia, se dedicam a cuidar da casa dos outros. A magistrada também
defende maior reconhecimento dos trabalhadores rurais e igualdade entre
homens e mulheres.
“Olhando para trás, eu, felizmente, não fui explorada, mas não defendo o
trabalho antes dos 18 anos. E se tem um trabalho que é muito invisível é
o trabalho doméstico”, declarou. “Eu também tenho uma preocupação
grande com a execução trabalhista. De todos os processos que chegam ao
fim, apenas 30% se efetivam. E isso é importante tanto para o
trabalhador quanto para a empresa. É fundamental que se tenha a garantia
de que o trabalhador vá receber seu crédito.”
A ministra Delaíde Miranda Arantes durante a adolescência (Foto: Delaíde Arantes/Arquivo Pessoal)
A preocupação é tão grande que Delaíce conta que é impossível não levar
trabalho para casa. Casada com o ex-deputado federal Aldo Arantes
(PCdoB-GO) e mãe de duas filhas, de 33 anos e 31 anos, ela sonha em
conseguir conciliar as atividades com os cuidados aos três netos.
Ela conta que também almeja fazer um mestrado e aprimorar o inglês.
Além disso, destaca o gosto pela leitura. Os escritores preferidos são
Machado de Assis, José de Alencar e Érico Verissimo, afirma.
A ministra Delaíde Miranda Arantes, em seu gabinete no Tribunal Superior do Trabalho (Foto: TV Globo/Reprodução)
PEC das domésticas
Mesmo orgulhosa da aprovação da Proposta de Emenda Constitucional que equipara direitos de domésticos a de outros trabalhadores, Delaíde diz acreditar que ainda é preciso mais. A medida passou a garantir salário-mínimo, férias proporcionais, horas extras, adicional e FGTS às domésticas.
Mesmo orgulhosa da aprovação da Proposta de Emenda Constitucional que equipara direitos de domésticos a de outros trabalhadores, Delaíde diz acreditar que ainda é preciso mais. A medida passou a garantir salário-mínimo, férias proporcionais, horas extras, adicional e FGTS às domésticas.
“O serviço é prestado a uma pessoa física, que de forma direta não visa
lucro. Eu defendo a igualdade. Estamos em uma transição para a
igualdade plena dos direitos, mas ainda tem um convencionalismo em
certos setores da sociedade de que o trabalho braçal não precisa de
tanta proteção. Veja, são 7 milhões de trabalhadores domésticos e mais
de 60% deles são mulheres negras”, disse. “[A igualdade] é o meu sonho e
o que considero justo.”
Uma das 27 ministras do TST, a magistrada conta que tem duas empregadas
e que as incentiva a estudar. A do apartamento em Goiânia é formada em
história, e a de Brasília está concluindo o segundo grau.
“Elas são fundamentais para mim, porque, se não cumprirem o trabalho
delas, vou ter que ir para casa para fazer. É por isso que eu nunca
consegui entender porque elas não teriam FGTS, por exemplo, antes da
emenda. Na minha casa, elas têm os mesmos direitos que todo trabalhador
tem. O volume de serviço é grande, e eu tenho nelas inteira confiança”,
disse.
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